quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A Formação do Profissional de Saúde - A Organização das Escolas de Saúde

No artigo A Formação do Profissional de Saúde - 1 explicitei as relações que envolvem a educação formal e o seu papel como produto das relações de produção estabelecidas por cada Sociedade em seu tempo e espaço.
Texto mais centrado em entender o papel da educação, na sociedade atual, a análise histórica só foi buscada quando se necessitava de elementos comparativos, ilustrativos de que as formas de ensino-aprendizado estavam diretamente ligadas as necessidades produtivas de sua época.
O enfoque do texto que se segue não me permite legar o caráter histórico do desenvolvimento das formas de se pensar o profissional de saúde e cometer, assim, a mesma simplificação teórica do primeiro texto.


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O processo de especialização e diversificação das formas de trabalho receberam forte impulso através das transformações ocorridas na sociedade européia a partir do século XVIII. Costuma-se creditar tal fenômeno ao avanço no domínio das técnicas e das tecnologias oriundas da revolução industrial o que leva a uma simplificação das relações humanas a lógica da tentativa e erro, retirando-se assim a nossa qualidade mais fundamental que é, através da reflexão sobre determinado problema, gerar formas de trabalho que possam oferecer sustento as nossas necessidades.
As novas formas de trabalho não surgem por geração espontânea ou simplesmente por demanda técnica. São antes de tudo fruto das formas de se conceber o ser humano e seu papel na Sociedade. Nos séculos XVIII e XIX, o Capitalismo havia amadureceria o suficiente a ponto de gerar teóricos, pensadores que se propunham a entender o seu funcionamento e como implementar mudanças na sociedade de forma a maior sustentação a esse sistema. Não é o Capitalismo uma simples forma de se realizar trocas de produtos. Antes de mais nada é uma forma de se organizar a sociedade, de se pensar no papel que cada indivíduo deve exercer dentro dela. No caso da saúde, um dos braços do Capitalismo, o Positivismo, teria papel fundamental, ao servir de guia na forma de ensinar e de atuar dos mais diversos profissionais. Ao longo do texto veremos que a influência do Positivismo dentro das escolas de saúde se estende até os dias atuais com resultados, para a sociedade, duramente criticados.
Trabalho infantil: amplamente
utilizado na Revolução industrial
Se por um lado o Capitalismo permitiu que se expusesse toda a magnitude do trabalho coletivo, também produziu desafios como a pacificação das tensões existentes entre aqueles que tem acesso ao fruto de produção e aqueles que não tem. Na saúde, o resultado dessas diferenças de posição dentro da cadeia produtiva levaria a uma constatação de certa forma simples: o rico e o pobre adoecem e obtem, posteriormente, desfechos diferentes.
A escola positivista não era um homogênea. Com diversos autores e percepções sobre a sociedade, só vamos tratar aqui sobre os elementos centrais ao entendimento da sua influência dentro do ensino e das práticas em saúde. Seriam eles a fragmentação do conhecimento, o uso da ciência (método científico) como forma de se entender as questões sociais (aliás, todas as questões) e a "naturalização" destas mesmas questões. Ao se buscar uma ordem natural para as coisas, era limitante no campo das transformações sociais.
Favoreceria o distanciamento do profissional de saúde da discussão sobre a sociedade no qual o indivíduo que buscava tratamento estava inserido e a influência que ela exerceria sobre ambos, quem dá e recebe o cuidado.
Portanto a fragmentação do conhecimento, além de necessária para a otimização da forma de se entender diversos aspectos da natureza, também carregava um caráter político ao reforçar a tecnicização de cada indivíduo. Isso porque o simples fato de dominar em profundidade o entorno de determinado fenômeno, digamos, a maneira como determinados elementos químicos reagem entre si, não permite ao sujeito entender o papel que aquele conhecimento tem dentro da sua sociedade. 
Como todas outras atividades humanas, o conceito de saúde e suas formas de atenção não passariam imunes.
Até o início da Revolução Industrial as formas de se conceber saúde haviam passado por diversas transformações ao longo da história. De uma explicação metafísica até a adoção de elementos científicos, as políticas públicas sempre refletiram o espírito de sua época como, por exemplo, a espera pela decisão do rei absolutista quanto a maneira como cada súdito deveria cuidar da própria saúde.
De qualquer forma, os conhecimentos acerca do porquê uma pessoa adoecia estavam, em sua maioria, relacionados às condições de vida daquela pessoa ou ainda as ações que cada um tomava no seu cotidiano, partindo, portanto de uma análise moral.
As descobertas de Louis Pasteur
alavancaram a microbiologia
à exemplo de excelência do
entendimento em saúde.
Com o advento de conhecimentos mais profundos nas ciências naturais foi possível entender como algumas patologias se instalavam ou ainda como se dava o seu desenvolvimento. O processo científico, ao se firmar como fiel da balança dentre aquilo que era, ou não, relevante em termos de saúde, por um lado permitiu enormes avanços, por outro serviu também ao processo de fragmentação do conhecimento o qual levaria, eventualmente, a compreensão do ser humano dentro de uma óptica puramente biologista. As descobertas da microbiologia seriam utilizadas para sustentar a lógica de um agente causal produzindo adoecimento. Portanto a eliminação deste agente seria o suficiente para se restabelecer o indivíduo ao seu estado saudável.
A partir do momento que as saúde passam a ser custo-efetivas e apresentam resultados duradouros, o seu papel dentro da cadeia produtiva se torna fundamental. Garantir a manutenção da mão-de-obra do empregado tornou-se possível com dispêndio de recursos.
Como vimos no artigo Atenção Básica é nesse momento que projetos sociais entram em disputa. A terríveis condições de trabalho a que estavam sujeitos os trabalhadores naquele tempo (e que ainda estão a maioria nos dias atuais) em contraposição a vida abastada de outro grupo permitiria a emergência de concepções antagônicas de intervenção. Nos séculos XVIII e XIX as disputas pela forma da política pública de saúde vão repercutir grandemente na maneira de se ensinar sobre a saúde humana e nos conceitos que estarão ali envolvidos. Ainda que em sua maioria a população não tivesse acesso a profissionais de saúde oriundo de uma formação acadêmica, as escolas médicas da época se tornariam referência quanto a assistência.
E é importante que se reforce isso. As outras profissões da saúde existentes no Brasil hoje em dia podem, assim como a Medicina, traçar a sua origem a práticas muito antigas. No entanto o seu caráter prático de restabelecimento da saúde serão fundamentais para o expansão do setor produtivo. Além disso deve-se sempre lembrar da forte influência do Positivismo na percepção do natural. Aquilo que pode ser quantificado científicamente passa a ser o importante. Muito do entendimento sobre o ser humano, que a psicologia traria, seria visto como distante de uma prática passível de análise científica, portanto menos eficiente, como pregava o Positivismo.
Além disso, no século XIX há uma considerável expansão da indústria médico-hospitalar. Como qualquer empreitada, esse complexo passa se torna fornecedor de produtos para a população com o objetivo de obter lucro. O que diferencia esse setor de diversos outros é que os seus lucros vão depender de um consumo mediado. Explicando melhor: não basta que um medicamento, por exemplo, esteja na farmácia. A grande resolutividade dos tratamentos médicos, somados as representações históricas das profissões de saúde vão garantir ao médico o papel de mediador entre a indústria e a necessidade da população.
Não bastava uma política agressiva de distribuição ou mesmo de competição por novos mercados. Era necessário também que todos os elementos do setor produtivo médico-hospitalar fossem envolvidos para que se garantisse o lucro das indústrias.
Como discutido no artigo sobre a Formação do Profissional de Saúde, a educação está diretamente ligada as formas de produção de sua época. A educação médica, estruturada de forma diversa nos diversos países do mundo seria subjugada, então, pelo setor produtivo. Além de ser orientada ao lucro de um certo grupo, passaria também fazer parte desse mesmo grupo. Era a ascenção do Modelo Flexneriano!


Modelo Flexneriano

Quando a associação de médicos estadonidenses, AMA, criou o seu conselho de educação médica (CME) o seu objetivo era produzir alguma forma de regulação sobre as escolas de medicina dos E.U.A. A maneira como isso seria feito só foi possível graças a um acordo feito entre a CME e a Carnegie Foundation for de Advancement of Teaching. Esse acordo previa a criação de um grupo de estudos que analisasse a situação do ensino de medicina naquele país e formulasse propostas para a uma futura reforma.
Abraham Flexner: 1866 - 1959
Quem levaria a cabo a tarefa de visitar 155 escolas nos E.U.A e Canadá seria Abraham Flexner, pedagogo estadounidense que atraiu a atenção de Henry Pritchett (diretor do Carnegie Foundation e grande entusiasta da reforma das escolas médicas) em 1908. A razão disso teria sido o livro de Flexner, A American College, que fazia duras críticas ao ensino superior do seu país.
Seriam necessários dois anos, entre as andanças do pedagogo e a compilação dos dados, para que fosse lançado o Relatório Flexner (leia o original: Flexner Report). Custeado pela Rockfeller FoundationAbraham Flexner pode implementar as mudanças que considerava pertinentes no ensino médico graças, principalmente, a grande inserção da família Rockfeller dentro do Governo dos E.U.A.
Nesse documento foram lançadas críticas duríssimas ao ensino de medicina nos dois países investigados além de propostas de fechamento ou de reforma nas escolas que, segundo o pesquisador, se mostrassem viáveis.
O resultado, como os links apontam, foi o fechamento de diversas escolas médicas e a adoção de uma forma homogênea de se ensinar medicina. Forma essa que, somada as pressões econômicas da época, gerariam uma relação visceral entre a saúde humana e o setor produtivo tendo repercussões fortíssimas nas outras profissões da mesma área.
A instituição de um modelo biomédico de entendimento do processo de adoecimento dentro das escolas médicas, ratificaria a biologia como única via de compreensão do adoecer. Aliás, ao se estabelecer na mente dos estudantes de medicina uma formulação de saúde como sendo a eliminação do agente causal da doença, passava-se a entender a saúde como ausência de doença.
Triunfaria o foco sobre os processos físicos elevando enormemente o status de de disciplinas tais como a fisiologia, patologia e bioquímica.
Mas não era simplesmente isso. O Modelo Biomédico é mais que uma forma de se entender o processo de adoecimento. Tal modelo orienta as ações em saúde servindo como instrumento de análise do profissional. Se configura assim como óculos através dos quais a própria sociedade enxerga os serviços de assistência.
Esse modelo alicercearia, numa análise da prática pedagógica, a necessidade de grande formação científica, a distância dos aspectos psicológicos e sociais da existência humana, a necessidade de especialização para que se pudesse garantir o domínio prático/teórico de um determinado campo de atuação. Era como se o Positivismo tivesse se concretizado como forma de ensino médico.
A atuação do profissional não contemplaria a prevenção a doenças, se manteria distante dos temas de caráter coletivo e reforçaria o distanciamento profissional numa atitude de observador/objeto. Na tentativa de se minizar estas limitações surgia a Medicina Preventivista, grande influenciadora do ensino médico e tema para artigos futuros.
O modelo de atendimento ao público deveria estar apto a receber tal profissional e dar vazão às necessidades da indústria médico-hospitalar. O hospitalocentrismo e a forte dependência de novas tecnologias se constitituiriam em paradigmas que perduram até os dias atuais. Além disso haveria uma forte tendência a medicalização, permitindo que diversos aspectos da vida humana fossem passíveis de intervenção médica sem que houvesse uma discussão ampla como a que se daria no mundo a partir dos anos 1960.
O Relatório Flexner recomendaria ao cursos de medicina um período de seis anos de estudos, com aulas analítico-expositivas ministradas por docentes especializados nas áreas em questão. Em termos pedagógicos não haveria debate mais intenso que esse. A maneira de se transmitir conhecimento sofreria como principal alteração o fim dos Seminários ministrados por especialistas. Seria dividido em três ciclos: 2 anos de matérias ditas básicas (anatomia, fisiologia, bioquímica, patologia, etc), um segundo ciclo também de dois anos de práticas clínicas que envolveria capacidade de análise de doenças (semiologia, propedêutica, etc) e finalmente dois anos de estágio intra-hospitalar (famoso internato médico).
Como foi dito acima, essa lógica seria transmitida aos outros cursos. As razões para disso incluem o grande prestígio que a classe médica alcançaria o que a permitiria interferir decisivamente na forma de se pensar a saúde para a população, a melhor organização do ensino/pesquisa no campo médico e ainda a própria orientação espacial do sistema. A partir do momento em que o hospital se torna a referência social para o cuidado, as práticas em saúde que se converteriam em profissões ao longo dos séculos XIX e XX, estariam no território de domínio médico. Portanto além de ter como professores e/ou orientadores os médicos (já oriundos do modelo biomédico e agora formados dentro da escola flexneriana) , teria também esses mesmos profissionais em posição hierárquica privilegiada dentro do espaço de trabalho.
Cito o caso da Fisioterapia, por exemplo. Como prática de recuperação física, torna-se especialmente importante nos períodos pós 1ª Guerra Mundial graças ao grande número de combatentes que carregam a marca do conflito. Com raízes em práticas que se estendem até Hipócrates, o contexto da primeira metade do século XX seria responsável por gerar um perfil de trabalho que não se alterou desde então.
Com um curso estruturado basicamente no entendimento do corpo humano e sua dinâmica motora, o curso formaria egressos, no seu início, com docentes médicos. O ambiente de tratamento seria intra-hospitalar, demandando tecnologias própria dele.
O resultado de anos dentro dessa concepção não se esgotou ainda. Por ser uma área essencial para a sociedade, a maneira de se pensar e exercer saúde são uma fonte de intenso debate político. Assim, as limitações de um determinado modelo, como o biomédico, trariam resultados perceptivos em escala mundial. A escalada do custo da assistência, o distanciamento entre os profissionais e os pacientes, a demanda por universalização dos sistemas de saúde, movimentos sociais que exigiram sofisticação das suas ferramentas (como é o caso da ética), entre outros, seriam responsáveis por mudanças em grande escala na formação do profissional de saúde. A reforma do ensino contestaria, em termos, o ser humano como ser unicamente biológico.

Por isso no terceiro artigo vou tratar das transformações ocorridas principalmente a partir da segunda metade do século XX (sociais, econômicas, políticas) e seu impacto no ensino - pedagogias (metodologias ativas, qualidade total, precarização) e o perfil dos egressos das diversas profissões da saúde.




Um comentário:

  1. Adorei seu trabalho! Pena que poucas pessoas tenham interesse em conhecer essa verdade. Mesmo assim muito obrigada por torná-la acessível.
    Abraço. Fernanda.

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